Outra generalização pouco fundamentada a respeito das sessões especiais da peça foi a feita pela jornalista Márcia Abos, para a Globo online (25/03/2007), descrevendo “o uso de experiências sensoriais para deficientes visuais” como “inédito na América Latina”. Com um pouco de pesquisa na internet, chega-se à página da União Nacional de Cegos do Uruguai, que conta outras experiências sensoriais levadas a cabo em vários países, não somente latino-americanos, desde 1999.
Histórico do Uso da Audiodescrição
Após pesquisar a legenda fechada para os surdos entre os anos 2000 e 2002, em 2004 tive o primeiro contato com a audiodescrição, em oficina de congresso sobre tradução audiovisual em Berlim, seguido de outra oficina em Barcelona em 2005, ministrada por um especialista britânico. Em outubro de 2004 fundei o grupo de pesquisa TRAM (Tradução e Mídia), registrado na UFBA e CNPq, onde investigamos, além de outros temas, a audiodescrição.
Audiodescrição e Narração ao Vivo
Uma ramificação do grupo de pesquisa da UFBA – alunas pesquisadoras voluntárias e especialistas em lazer e mobilidade das pessoas cegas – foi treinada por mim em audiodescrição de filmes para então desenvolver, desde 2005, pesquisas de recepção. Ou seja, audiodescrevemos e apresentamos filmes ou seqüências deles a grupos de cegos em Salvador (Associação Baiana de Cegos, Centro de Apoio Pedagógico ao Deficiente Visual e Instituto de Cegos da Bahia) e em São Paulo (Laramara e Dorina Nowill) com o intuito de buscar um modelo de audiodescrição que satisfaça os espectadores deficientes visuais. O início do processo está documentado em publicação da Ciência e Cultura, revista da SBPC ( http://cienciaecultura.bvs.br), volume 58, no.1).
Qualidade, Tempo, Custos e Resultados
Os resultados das pesquisas de recepção do grupo (uma em São Paulo e duas em Salvador) já foram apresentados em Barcelona (junho de 2005), em Copenhague (maio de 2006), e em Salvador (dezembro de 2006, em congresso da UFBa), e estão na fila de publicação faz algum tempo em editoras do país1. Timidamente, o trabalho tem conquistado o reconhecimento internacional e algum reconhecimento regional, como o proporcionado por uma entrevista na TV Educativa da Bahia, em julho de 2006. O reconhecimento internacional veio não só dos congressos, mas do fato de eu ter cursado doutorado na Bélgica (1995-2000) e agora, estar fazendo um pós-doutorado em tradução audiovisual na Universidade Autônoma de Barcelona até o final de agosto de 2007, o que facilita muito o contato e intercâmbio de idéias. Isto tudo com o apoio da Capes, que sempre financiou meus estudos. O problema é que, após tanto investimento em conhecimento no exterior, é difícil aplicá-lo na volta ao Brasil.
Por exemplo, o Pós-Doc em tradução audiovisual enfoca a questão da acessibilidade. Entretanto, como posso desenvolvê-la, e até mesmo ensiná-la, sem recursos disponíveis para investir em equipamentos que a área exige, por exemplo, uma ilha de edição para a mixagem da audiodescrição? Por isso, a pesquisa é feita de modo quase artesanal, e muito lentamente. Aí, chega primeiro quem tem dinheiro, como a Instituição Vivo, que equipou seu teatro com fones sem fio, os mesmos que se usam em interpretação simultânea. Que bom se esse teatro fosse disponibilizado para nós, pesquisadores!
AInvisibilidade e o Não Reconhecimento
A mais recente iniciativa de promover a acessibilidade audiovisual foi a da Profa. Dra. Lívia Maria Villela de Mello Motta que, através de sua experiência na capacitação de pessoas cegas e de sua participação voluntária no Grupo Terra de Inclusão Social, acabou escrevendo o primeiro roteiro de narração para teatro no país, o da peça Andaime. E quase ninguém sabe disso também. Infelizmente, nenhuma de nós tem poder para promover o estardalhaço da mídia nacional. O comentário do entrevistado do Jornal Nacional (março 2007) Leandro Dupré, cidadão cego, após assistir à peça, de que seria bom que fizessem o mesmo com filmes, isto é, os audiodescrevessem, atesta mais uma vez a invisibilidade em que o pesquisador vive, não porque quer. Assim, todos os méritos ficam para a empresa promotora. Sim, a Vivo tem méritos, como o Programa Vivo Voluntário, que promove a capacitação de voluntários da empresa através de cursos. A narração da peça teatral Andaime, em cartaz no Teatro Vivo de São Paulo, foi desempenhada por alguns desses voluntários, orientados pelo curso ministrado pela Profa. Lívia.
Eu mesma fui conferir a iniciativa na estréia da peça ao público, no final de março passado, por ocasião de viagem ao Brasil. Contudo, para meu desapontamento, em nenhum momento, e diga-se de passagem, em nenhum lugar do site da Vivo ouvimos ou lemos algum crédito à referida professora, que ministrou o curso e escreveu o roteiro da narração da peça. É triste ver tanta dedicação sem reconhecimento. Então, nós, pesquisadores dedicados, viramos uma instituição que fez isso, fez aquilo, e que no final “criou os audiodescritores”. Justiça seja feita, o único agradecimento à professora de que tenho conhecimento foi de autoria de Paulo Romeu, conhecido ativista da causa da acessibilidade, em texto disponível no site da “Bengala Legal”. E é só.
Ora, mesmo que freqüentem um curso, os audiodescritores não se “criam” tão rapidamente, é preciso muita prática. E audiodescritor é quem escreve o roteiro, principalmente. Aqui na Europa, são cursos e cursos, discussões e discussões. Precisa-se estudar os padrões locais, as preferências nacionais, as questões culturais, não é tão simples assim fazer audiodescrição. No final, a iniciativa fica sendo uma novidade da empresa promotora, e alguns dos cidadãos cegos que ali estavam, e davam entrevistas à televisão, não tinham outro nome a mencionar e agradecer. É claro, foi a Vivo que pagou o curso ministrado pela professora aos voluntários, mas além de justo, o que representa esse valor para a empresa que se define como “a maior prestadora de serviços de telecomunicações móveis do Hemisfério Sul”?
A Vivo é uma empresa privada controlada pelos Grupos Portugal Telecom e Telefónica da Espanha. Seu programa de responsabilidade social é, sem dúvida, louvável. Mas, pensando bem, não seria mais uma obrigação do que um mérito o fato de que toda empresa que lucrasse no país, nacional ou estrangeira, contribuísse com algum setor carente da sociedade? Será que estamos tão mal-acostumados, no pior sentido da expressão? Percebi que o público deficiente visual que ali estava na sessão de teatro elogiou muito a iniciativa “da Vivo.” Claro (oops!), acostumados a nunca ver seus direitos de acessibilidade atendidos, qualquer ação é bem-vinda por parte destes espectadores. É difícil ser mais crítico sem nenhum parâmetro de comparação, é verdade.
Conclusão
O que eu tenho notado nas pesquisas de recepção é que é difícil contentar a todos os deficientes visuais ao mesmo tempo, por isso é importante que eles falem, dêem opinião sobre essa ou aquela audiodescrição, ao invés de elogiar apenas. Só assim será possível chegar a um maior consenso, embora nunca completamente satisfatório. E, desta forma, a pesquisa poderá avançar e fornecer dados precisos para que projetos sejam elaborados, como a formulação da norma de acessibilidade pela ABNT.
Pode parecer, mas não estou criticando a iniciativa da Vivo, mas o desprezo pelo trabalho acadêmico, representado aqui pelo trabalho dedicado da professora Lívia, a indiferença pela pesquisa. Espero que a Vivo continue investindo na audiodescrição cada vez mais. Espero que haja mais e mais voluntários na empresa interessados em audiodescrição. Aliás, parabéns aos voluntários da Vivo! Eles merecem! O que eu considero uma pena é o fato dos recursos disponíveis serem destinados apenas aos voluntários da empresa, sem qualquer vinculação com pesquisadores, as pessoas que produzem o conhecimento sobre audiodescrição, o profissional que forma o voluntário da empresa. Se a Vivo se dispõe a trabalhar com “honestidade, profissionalismo e transparência”, nada mais justo do que dar visibilidade a quem a ajudou. A falta de reconhecimento público do trabalho da professora Lívia é uma prova da falta de interesse, e um imenso desestímulo àqueles que realmente se dedicam à causa. Desta forma, a responsabilidade social empresarial nunca trabalhará de mãos dadas com a educação. E dá a impressão de que tudo gira em torno de autopromoção. E o pesquisador permanece invisível.
1 “A Audiodescrição Amadora e Acadêmica em Confronto: Um Estudo de Caso”, em fase de publicação; e “Em busca de um modelo de acessibilidade audiovisual para cegos no Brasil: Um projeto piloto”, publicado em Tradterm, v.13, São Paulo: Humanitas (FFLCH/USP), 2007, p.171-185.
Eliana P. C. Franco.
Professora da UFBA, Pós-Doutora UAB
Capes.CoordCNPq. Audiodescrição e coordenadora Projeto TRAMAD/DLG-UFBa